quarta-feira, 7 de abril de 2010

Frio como pedra...

  Chovia e ventava muito, a tarde parecia que não iria acabar bem para qualquer ser humano que estivesse fora de seu lar naqueles dias de começo abrupto de inverno, bom mesmo era estar numa cama quentinha, com uma boa xícara de café com leite bem quente assistindo algum filme imbecil da tv aberta de nosso querido e furtivo país. As árvores dali já estavam parecendo ir passear, como se fossem levantar vôo e seguir um caminho natural guiadas simplesmente pelo vento, o cenário cinza era predominante e as 13:45hs a noite fazia-se de forçada presença naquela paisagem fora de hora.
  Ele pensou:  -Esta frio e venta muito mesmo... acho melhor esperar. Porém tinha compromisso, havia tanta coisa para ser feita, quantas pessoas dependiam dele? Quantas respostas precisava dar, quantos conselhos inadiáveis para pessoas desesperadas que nele depositavam o que lhe restara de esperança. Dentro de sua cabeça as idéias vinham e iam como o vento que dominava o lugar..."Zébrinha não pode ir embora hoje e Carmão teria que esperar o pai chegar de Vila Velha e hospedá-lo no Sertão junto ao seu primo". Tantos compromissos, quanta coisa por fazer, sentia seu coração bater pesado, e os sopros lhe causando taquicardias que o faziam soluçar. Dentro do armazém, tudo tão quente e mediamente confortável, com um copo de conhaque de alcatrão nas mãos tensas, trêmulas e já enrugadas pela umidade e pelo próprio tempo de vida, tempo de uso mesmo. -Quer saber, vou enfrentar a chuva, enfrentarei esse vento e toda as desgraças que ele trás consigo, levo a enchente no peito, nado pelo vento minuano e chego em meu destino e resolvo de uma vez as pendengas dessa vida que tanto estão a me castigar o pensamento. Pensou e agiu.
O homem se armou de oxigênio e bons pensamentos, colocou a esperança em dia e resolveu. Abriu a porta de madeira batida do armazém, levando no rosto um tapa feroz do vento vivo e congelante, os respingos agudos da chuva torrencial ardiam-lhe a pele como esponja na pele bem esfregada e assim se lançou com seu corpo para fora, com o vento quase lhe devolvendo para dentro do armazém, porém em passos insistentes ele caminhou para fora um passo depois do outro.
  Uma mão enfiada dentro do paletó e o outro segurando o chapéu de feltro, os pés já encharcados pelas poças d'água que logo foram se transformando em piscinas e as piscinas e rios e os rios em correntezas arrastando a tudo pela frente, ele andava e com esforço do outro mundo alcançava metros e metros à frente, indo para o mais próximo possível de seu destino; "Não podiam ficar sem mim e sem as minhas soluções", pensava e caminhava, cada vez mais o esforço era sobre-humano para aquelas pernas que já não eram de um vaqueiro, muito menos esportista. Cansou, o rio que se transformara as ruas, forçava para que seu caminho fosse o contrário, seu coração batia descompassado demais, o pulmão que já não era bom, já não tinha força para colher no espaço o ar que necessitava. A barba branca já empapada, quando respirava, sempre vinha muita água junta, por todos os lugares era bombardeado violentamente pelas forças da natureza, a chuva forte já lhe lembravam pedradas, o vento parecia querer lhe arrancar os membros e sobre tudo lhe tirar do poste onde já havia se agarrado para não ser levado pelo rio de lama. O corpo estava mesmo padecendo, a visão que tinha de onde estava não era bonita, muita coisa sendo arrastadas pelas águas, as árvores em grande número já não se agüentaram nos seus devidos lugares, suas raízes cederam e se deixaram levar pelo rio lamacento. Havia um cão cinzento, que ele conhecia, era de seu amigo Reginaldo do Coco, o nome do cão era Cinzento e o Cinzento... rodava no espiral de um redemoinho nas águas que o levou não sei para onde... "Pobre Cinzento... vai saber onde ira parar"; pensou e voltou a se agarrar firme ao poste. O gosto do arrependimento de tantas coisas tomaram sua boca, sobre tudo de deixar o conforto do Armazém... "Seu Frávio bem que me avisou de tal trapaça dos tempos".
  Quando deu por si novamente ainda ouvia os latidos do Cinzento, olhou para direção dos latidos e ainda viu o cão se despedir do mundo, e nesse momento seu corpo todo molhado já não suportava o frio dos ventos, a umidade tomava-lhe o corpo todo, sentia-se como um chache de mate num copo de água gelada, os pensamentos começaram a ficar bem confusos e por instantes achava que estava totalmente bêbado com amigos, abraçado em um poste pronto para regurgitar toda a embriagueis, e quando a consciência lhe tomava novamente o censo, via-se perdido, não havia nada nem ninguém por lá, apenas ele, o som dos trovões, o cantar dos ventos e o silêncio do frio que lhe queria a alma. Fechou seus olhos e não se lembrava mais do porque estar ali e logo já não lembrava o que era aquilo tudo, aqueles barulhos todos e rapidamente não ouvia mais nada, fechou os olhos, agarrado ao poste com o rio forçando suas pernas a sair dali e ali no escuro de seu mundo, silencioso, distante de tudo ficou, alheio, obstinadamente só e incorrupto ali naquele poste.
  Já era quinta feira e a chuva e toda sua desgraceira foi-se. O sol envergonhado chegou e vagarosamente as ruas foram secando e dando desenho de novo ao todo. O lixo e cheiro ruim que já era de se esperar de um dia após um dilúvio já se instaurara no ar do Sertão e todos lentamente começaram a dar as caras. Feliciano o menino de Deodete correu todo corado e agradecido pelo sol que trazia liberdade das brincadeiras de rua novamente, correu, correu, juntamente com Cipó seu cacharro vira-lata que gostava de roubar qualquer pedaço de tira-gosto que lhe marcasse de frente a cara. A fumaça devida à evaporação das águas ainda subia naquela manhã e Feliciano corria batendo uma bola de borracha bem antiga e já furada e murcha por ali. Passa pelo Armazém e cumprimenta o Seo Frávio que ali estava alisando o gato como todo o tempo que o vira por lá... "Tarde seo Frávio!"; "Tarde Feliciano!" respondeu o velho, atirando um biscoito ou coisa que o valha para Cipó, e dali seguiram caminhada virando a esquina, Feliciano olha meio desacreditado e vê um espectro agarrado ao poste, chega perto e vê o homem ali agarrado, encharcado e com olhos assustadoramente brancos... calmamente voltaram ao Armazém ele e Cipó, avisaram seo Frávio e então uma pequena multidão se juntou ao poste e ao seu novo adorno, todos olhavam e admiravam, era difícil por ali defunto na rua, todo mundo morria na cama, era rara a ocasião e por isso o leve tumulto. 
  As mães chegaram já pegando cada filho pela respectiva orelha e assim os arrastando rua a fora..."Vamo moleque tá doido é? Não é bom ficar vendo defunto na rua não!" Os homens ficavam discutindo o que lhe teria ocorrido, Seo Frávio falando que teria avisado ao falecido sobre o temporal e seus perigos de morte. Chegaram assim os mais convictos enfermeiros e bombeiros do sertão, entendidos do assunto, e trataram de retirar o homem que no poste jazia, suas mãos fixadas uma na outra com os dedos trançados e as pernas abraçando também o poste, o homem estava duro como pedra, gelado como se posse a fazer gelo mesmo, com uma força abrupta e exagerada lhe arrancaram dali, jogado ao chão o homem continuava na mesma posição, morto, duro e gelado. Já não daria mais para aconselhar ninguém, Zébrinha já deve ter ido embora e ele não impediria, Carmão não deve ter esperado o pai chegar e a vida atrapalhada pela sua ausência permaneceria ininterrupta, inabalável, a única coisa que mudaria era o seu estado, que agora é sólido como pedra, sem vida como pedra, como se ele tivesse se transformado no poste que agarrara a noite toda. As pessoas, continuaram suas vidas e ele já não mais, tudo está normal ou não, pois já não importa mais, ele jaz aqui no poste e logo é piada.